Sempre fui de contar histórias. E de recontá-las depois, porque bem-aventurados são, de fato, os que sabem ouvir. Por isso, andei ouvindo com coração e estômago todas as histórias que me chegam sobre Nova Friburgo, minha casa amada, onde tive minha formação leitora aguçada pelas Doroteias da Monsenhor Miranda.
Histórias duras de ouvir, por certo; no entanto, é preciso cantar pra alegrar a cidade: recontar a margem de seus rios, suas cheias, seus entornos, seus enleios. A geografia poética de uma terra de gente boa de trabalho, de pensamento, de alma – coisas de quem descende de peregrinos e sabe que é preciso reinventar sempre o caminho, e a passos rápidos pra dar mais alento.
Várias histórias apontam para os meus ouvidos, por vezes débeis, sem vontade de acreditarem no que escutam. O Dr. João Madeira me fala de um silencio oco que impera pelos bairros, traduzindo o inexorável da catástrofe. Ele acha que os friburguenses ainda não estão chorando seus mortos como deveriam... A Prof.a Lucia Ramineli me fala de uma legião de voluntários que formigam pelas escolas, igrejas, anonimamente compartindo a dor dos que não conseguem sequer chorar suas desventuras. A Amanda Heiderich me fala que ficou sem ver a filha por três dias, com os avós isolada em lugar “seguro”, mas que perdeu colegas e alunos – ainda tenta localizar alguns deles, duas semanas depois. Tantas histórias, águas, águas.
Mas a história mais impressionante que me chega de Nova Friburgo é contada por Jane Ayrão, do Colégio Anchieta. Hoje, ela saiu para sua ação habitual de voluntariado, acompanhada de Álvaro Ottoni, escritor e contador de histórias. Foram juntos ao Alto do Floresta, visitar a única edificação que ficou de pé – a escola municipal local. Pois o resto “desceu”: casas, morros, vidas. Com a determinação de educadores que são, Jane e Álvaro levaram água, roupas, remédios, fraldas e LIVROS. Não imaginavam que este último item da cesta básica mataria a fome daquelas crianças de forma tão pujante.
Em meio a caixas e sacolas de mantimentos, colchonetes e cobertores, além de sacos funerários com corpos dentro (sim, a escola é o ÚNICO local para guardar gente, pão e mortos), hordas de crianças silenciosas ficaram barulhentas quando o “Tio” Álvaro começou a ler e a contar outras histórias. E o cardápio ficou mais variado: nesta manhã, as crianças tomaram suco com Monteiro Lobato, comeram pudim de leite com A bruxinha que era boa e se deliciaram com o prato principal: poesia, poesia. A palavra encantada que pode alimentar uma infância estupidamente afetada pela tragédia.
Jane me conta tudo isso com a voz embargada, ao telefone. Diz que não presenciou momento mais lindo em todos esses dias. Crianças pegando os livrinhos, querendo mexer neles, chamando-os a si como os amigos que lhes faltam – porque os pais se ausentaram, o Estado se ausentou, e a imagem de sacos pretos espalhados pelos cantos precisa metaforizar o recomeço de outra história para Nova Friburgo e seus pequeninos.
Então, ouvidos aguçados, eu senti a bem-aventurança: ora, sou professora de literatura, filha da região serrana e absolutamente convicta do poder de reencantar que a palavra tem! Jane e Álvaro me desafiaram com o tamanho de sua generosidade. Eu não sei cozinhar, não sei plantar alfaces nem rosas, não sei fazer curativos, podia até comprar uma galocha e sair corajosamente pelas ruas de Friburgo, como fazem a Jane e tantos deliciosos poetas do amanhã que habitam aquelas plagas, mas eu agora sei como estar presente. Semeando livros à mancheia, reencantando o agora, tendo fé no que virá.
Mas, para isso, conto com a ajuda de vocês, colegas professores, alunos e ex-alunos, amigos de longa e de curta data, amantes da literatura, leitores destas linhas que, enviesadamente, lerão também os olhos e ouvidos famintos das crianças de Nova Friburgo. Recolho, a partir de já, doações particulares de gibis, livros infantis e juvenis e congêneres, para enviar à Jane Ayrão e sua equipe (o Colégio Anchieta, lá em Friburgo, centralizará essas doações para fazer chegar os livros às comunidades desabrigadas). Valem também livrinhos de plástico e de pano ou aqueles que a gente recebe das editoras para avaliar e adotar, no início do ano letivo... Minha casa e meu escaninho na Faculdade de Educação estão à disposição de vocês. Quem souber de algum contato interessante em órgãos públicos e privados ligados à difusão da leitura, por favor, diga “presente”! Basta me mandar um e-mail que eu faço o contato “oficial”.
Até a pequenina aqui de casa, senhorita Aymée, do alto de seus quase 10 meses e extrema intimidade com os livrinhos, vai mandar para um/a amiguinho/a da serra um livro com um monte de espelhinhos dentro, para que ele/a possa se admirar e ver que a sua história de vida apenas começou ... E, quem sabe, mais pra frente, quando minha filha estiver a tagarelar em bom português, ela consiga contar aquela historinha maneira, que começa assim: “Era uma vez uma linda cidade chamada Nova Friburgo, que tinha uma pracinha cheia de árvores e banquinhos, vovós e crianças, pássaros e...”.
Anabelle Loivos Considera Conde Sangenis
Professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ, friburguense por adoção.
Niterói, 26 de janeiro de 2011.
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Quem também quiser (e puder) ajudar a matar a fome de leitura das crianças de Nova Friburgo, é só se manisfestar nos comentários, deixando um e-mail e telefone para contato. Nós encaminharemos todas as mensagens para o endereço eletrônico da Anabelle. Para quem mora na cidade do Rio, ou nas proximidades, pode fazer as doações na própria Faculdade de Educação da UFRJ, aos cuidados da professora Anabelle. Cada ajuda será muito bem-vinda! Contamos com vocês. O Viva a Língua e as crianças friburguenses agradecem.
Serviço:
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Educação
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